Na
eminente obra “Romeu e Julieta”, o autor, William Shakespeare, sob as vestes de
um romance efervescente, narra as inconsequências de uma juventude cercada de
privilégios. A peça demonstra que questões como a liquidez das relações
afetivas e a arbitrariedade da aplicação do direito penal com base na posição
social ocupada pelo autor do ilícito não são características exclusivas da
atualidade, mas já eram percebidas nos meandros da Renascença.
Em
sua primeira aparição na obra, Romeu chora dores de um “amor” não correspondido
por Rosalina. Em seguida, na primeira festa que se dispõe a comparecer, ao
deparar-se com a bela e formosa Julieta, com a qual Romeu troca apenas algumas
palavras, o sentimento que nutria por Rosalina é completamente esquecido. Tal
extrato consolida o entendimento de que Romeu e Julieta não é uma
história sobre amor, mas uma crítica à paixão e à efemeridade das relações na
juventude.
O
amor de Romeu não diz respeito às suas destinatárias: pouco importa se é Rosalina
ou Julieta, o sentimento que ele projeta sobre essas mulheres é que lhe é
aprazível, não suas personalidades. O que o personagem erroneamente intitula de
“amor”, pode ser interpretado como paixão ou necessidade de suprir o vazio
existencial que todos nós no fundo carregamos. Por outro lado, Julieta, a amada da vez, está carente, teme não
ser capaz de amar seu pretendente, o nobre Páris, e enxerga em Romeu uma
oportunidade de subversão familiar e conexão com seus desejos genuínos. O
“amor” do casal é o somatório de expectativas individuais frustradas, nas quais
os agentes envolvidos na relação são substituíveis.
Na
contemporaneidade, narrativas sobre a banalização e a fragilidade de laços
amorosos são recorrentes. O sociólogo Zygmunt Bauman, analisando interações
humanas no século das grandes inovações tecnológicas, já afirmava que as
relações não mais eram sólidas e duradouras, e que o amor havia se tornado líquido.
Todavia, ao percebermos essa característica já nos palcos elisabetanos, é
possível pensar que a efemeridade e fragilidade das relações sejam traços atemporais
da juventude, que foram meramente acentuadas com os adventos tecnológicos.
Em
face disso, conclui-se que, quando se é jovem, seja qual for o tempo ou o
espaço, emoções são catalisadas e esvaem-se na mesma rapidez que desabrocharam,
vínculos amorosos não possuem um caráter duradouro ou estável e a beleza física
é um enorme chamariz.
Outra
questão relevante abordada na peça é a arbitrariedade da aplicação do direito
penal com base nas condições socioeconômicas do autor do fato. Logo na
introdução da peça, o mais famoso spoiler
da literatura, Shakespeare explicita a condição social dos personagens. Aponta
que as famílias dos jovens Romeu e Julieta, Montéquio e Capuleto, eram iguais
em dignidade, isto é, constituíam linhagens respeitáveis na cidade de Verona.
Diante
disso, na primeira aparição do Príncipe, o governante, é cominada uma pena: aqueles
que perturbarem a paz das ruas da cidade pagarão com a própria vida. Tal frase
sugere que aqueles que provocarem imbróglios serão sujeitos a pena capital. No
entanto, ao decorrer da peça, Romeu, um jovem que possuiu o privilégio de
nascer em um seio familiar repleto de posses e boa reputação, quebra a quietude
da cidade, envolvendo-se em uma briga que se depreende na morte de Teobaldo, um
Capuleto. O Príncipe, então, ao aplicar a sanção penal, a interpreta de uma
forma benéfica a Romeu, que não pagará com a vida pelo delito cometido, como
havia sido estabelecido outrora, mas com o exílio.
Tal
fenômeno demonstra a arbitrariedade do sistema penal ao fazer valer o direito. A
norma foi interpretada de maneira distintiva e benéfica, pois tratava-se de
Romeu, cuja família era abastada. No entanto, o Príncipe teria tamanha
misericórdia se o autor da conduta fosse um mero camponês, que não ostentasse o
sobrenome Montéquio?
A
situação narrada assemelha-se com o que ocorre nos dias de hoje no que concerne
a políticas públicas de repressão às drogas, por exemplo. A triagem daqueles
considerados “usuários” e “traficantes” de substâncias ilícitas para o sistema
penal está intrinsecamente atrelada a localização do fato, situação econômica e
cor de pele do agente. Ao inserir a problemática em sua obra, Shakespeare
demonstrou que desigualdades de tratamento baseadas na condição de “ser” do
autor, não propriamente em sua conduta, não são características exclusivas da
contemporaneidade.