sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Romeu e Julieta: efemeridade e arbitrariedade


Na eminente obra “Romeu e Julieta”, o autor, William Shakespeare, sob as vestes de um romance efervescente, narra as inconsequências de uma juventude cercada de privilégios. A peça demonstra que questões como a liquidez das relações afetivas e a arbitrariedade da aplicação do direito penal com base na posição social ocupada pelo autor do ilícito não são características exclusivas da atualidade, mas já eram percebidas nos meandros da Renascença.
Em sua primeira aparição na obra, Romeu chora dores de um “amor” não correspondido por Rosalina. Em seguida, na primeira festa que se dispõe a comparecer, ao deparar-se com a bela e formosa Julieta, com a qual Romeu troca apenas algumas palavras, o sentimento que nutria por Rosalina é completamente esquecido. Tal extrato consolida o entendimento de que Romeu e Julieta não é uma história sobre amor, mas uma crítica à paixão e à efemeridade das relações na juventude.
O amor de Romeu não diz respeito às suas destinatárias: pouco importa se é Rosalina ou Julieta, o sentimento que ele projeta sobre essas mulheres é que lhe é aprazível, não suas personalidades. O que o personagem erroneamente intitula de “amor”, pode ser interpretado como paixão ou necessidade de suprir o vazio existencial que todos nós no fundo carregamos. Por outro lado, Julieta, a amada da vez, está carente, teme não ser capaz de amar seu pretendente, o nobre Páris, e enxerga em Romeu uma oportunidade de subversão familiar e conexão com seus desejos genuínos. O “amor” do casal é o somatório de expectativas individuais frustradas, nas quais os agentes envolvidos na relação são substituíveis.
Na contemporaneidade, narrativas sobre a banalização e a fragilidade de laços amorosos são recorrentes. O sociólogo Zygmunt Bauman, analisando interações humanas no século das grandes inovações tecnológicas, já afirmava que as relações não mais eram sólidas e duradouras, e que o amor havia se tornado líquido. Todavia, ao percebermos essa característica já nos palcos elisabetanos, é possível pensar que a efemeridade e fragilidade das relações sejam traços atemporais da juventude, que foram meramente acentuadas com os adventos tecnológicos.
Em face disso, conclui-se que, quando se é jovem, seja qual for o tempo ou o espaço, emoções são catalisadas e esvaem-se na mesma rapidez que desabrocharam, vínculos amorosos não possuem um caráter duradouro ou estável e a beleza física é um enorme chamariz. 
Outra questão relevante abordada na peça é a arbitrariedade da aplicação do direito penal com base nas condições socioeconômicas do autor do fato. Logo na introdução da peça, o mais famoso spoiler da literatura, Shakespeare explicita a condição social dos personagens. Aponta que as famílias dos jovens Romeu e Julieta, Montéquio e Capuleto, eram iguais em dignidade, isto é, constituíam linhagens respeitáveis na cidade de Verona.
Diante disso, na primeira aparição do Príncipe, o governante, é cominada uma pena: aqueles que perturbarem a paz das ruas da cidade pagarão com a própria vida. Tal frase sugere que aqueles que provocarem imbróglios serão sujeitos a pena capital. No entanto, ao decorrer da peça, Romeu, um jovem que possuiu o privilégio de nascer em um seio familiar repleto de posses e boa reputação, quebra a quietude da cidade, envolvendo-se em uma briga que se depreende na morte de Teobaldo, um Capuleto. O Príncipe, então, ao aplicar a sanção penal, a interpreta de uma forma benéfica a Romeu, que não pagará com a vida pelo delito cometido, como havia sido estabelecido outrora, mas com o exílio.
Tal fenômeno demonstra a arbitrariedade do sistema penal ao fazer valer o direito. A norma foi interpretada de maneira distintiva e benéfica, pois tratava-se de Romeu, cuja família era abastada. No entanto, o Príncipe teria tamanha misericórdia se o autor da conduta fosse um mero camponês, que não ostentasse o sobrenome Montéquio?
A situação narrada assemelha-se com o que ocorre nos dias de hoje no que concerne a políticas públicas de repressão às drogas, por exemplo. A triagem daqueles considerados “usuários” e “traficantes” de substâncias ilícitas para o sistema penal está intrinsecamente atrelada a localização do fato, situação econômica e cor de pele do agente. Ao inserir a problemática em sua obra, Shakespeare demonstrou que desigualdades de tratamento baseadas na condição de “ser” do autor, não propriamente em sua conduta, não são características exclusivas da contemporaneidade.